Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o stress e a depressão são as maiores causas de morbilidade nos países desenvolvidos. Razões relacionadas com a saúde mental, nomeadamente causadas por stress, são hoje dos principais motivos de baixas no trabalho. Em Portugal, um em cada três trabalhadores tem problemas de saúde mental relacionados com stress laboral, depressão ou burnout. Por tudo isto, o bem-estar psicológico dos trabalhadores deve ser alvo de atenção e requer a garantia de condições para a sua efetivação.
As condições em que vivemos há mais de um ano, decorrentes da pandemia da Covid-19 e das medidas decididas para lhe fazer face, obrigaram a uma mudança acentuada de hábitos de vida, a períodos extensos de confinamento e recolhimento domiciliário obrigatório e à aplicação do teletrabalho em múltiplos casos.
Desde 2003 a legislação laboral prevê o teletrabalho, mas de forma voluntária e por acordo das partes. É esse o pressuposto que norteia as normas relativas a essa específica forma de trabalho. Ocorre que, hoje, se discute o teletrabalho partindo de um pressuposto totalmente diferente, que consiste na sua aplicação como uma obrigação, por motivos de exceção (saúde pública), o que, importa sublinhar, já evidencia potenciais consequências negativas identificadas por alguns psicólogos, como sejam o aumento da instabilidade emocional, a ansiedade, e o stress. Assim, no que ao teletrabalho diz respeito, a atual legislação laboral não dá respostas que se impõem.
Com a enxurrada de legislação, criada para dar resposta ao problema de saúde pública causado pela Covid-19, previu-se ultrapassar condições excecionais. Porém, não pode ser assumido existir à luz dessa legislação uma resposta às alterações do mundo do trabalho e é preciso ter em conta que, por via da inovação tecnológica e de alterações que estão a ser forçadas pelas entidades empregadoras, está-se a criar o objetivo de tornar normal a exceção.
Mais, o que se está a verificar é que existem limites da dignidade da pessoa humana que estão, frequentemente, a ser ultrapassados no regime de teletrabalho, por parte dos empregadores, através de controlo remoto e abusivo, da desregulação horária e de aumento das formas de pressão sobre os trabalhadores.
O controlo do cumprimento dos deveres do trabalhador não pode ser efetuado de forma abusiva. Têm de ser respeitadas as regras do Regulamento Geral de Proteção de Dados e o princípio de não invasão/intromissão na vida pessoal do trabalhador, respeitando os seus tempos de trabalho e de não trabalho, quer existam, quer não existam horários rígidos. Sempre que a atividade o justifique, como é o caso de funções em que existe a definição concreta de horário de trabalho, o rastreamento deve ser feito por escrito, e o trabalhador deve ter, inequivocamente, acesso ao registo dos seus tempos de trabalho.
O teletrabalho realizado hoje na sua maioria é feito no domicílio. Porém, não tem de ser realizado no domicílio, podendo sê-lo em instalações da empresa, em locais públicos, em espaços de terceiros ou mesmo ao ar livre. Em bom rigor, o que o define é a forma de comunicação com a organização. Ou seja, é o trabalho realizado fora do estabelecimento/centros de produção, dirigido pela organização, mas por meio de tecnologias, sem contacto pessoal, mediante a utilização de tecnologias de informação para recepção e entrega do mesmo. Os meios tecnológicos e outro material utilizado no teletrabalho devem ser propriedade do empregador, podendo, ainda assim, ser do trabalhador, mas a verdade é que este pode recusar a prestação de teletrabalho por ausência de meios e condições.
O trabalhador está, portanto, dependente de instruções de trabalho da organização e tem o direito de utilizar as ferramentas digitais da mesma, independentemente do local de trabalho. No caso de isso não acontecer, compete à entidade patronal suportar os custos dos meios tecnológicos, das ferramentas ou dos materiais necessários ao trabalho que não sejam fornecidos pela mesma, bem como compensar despesas com o aumento de consumos energéticos, rendas ou outros gastos que recaem sobre o trabalhador por via da prestação do teletrabalho em espaços onde estes consumos sejam da sua responsabilidade. O mesmo se coloca, por exemplo, em relação à aquisição de mobiliário agronomicamente adequado à prestação da atividade.
Um estudo de 2017, realizado pela ADENE – Agência para a Energia – concluiu que as famílias portuguesas gastavam cerca de 112 euros por mês em água e energia elétrica em casa. O regime de teletrabalho provoca uma permanência em casa de no mínimo mais 7 ou 8 horas diárias, ou seja, mais que duplicam as horas ativas na habitação, ampliando os consumos energéticos também para cerca do dobro. Os trabalhadores têm de ser compensados, até porque relativamente à empresa o que se verifica é uma redução de custos, os quais, no caso de não compensação, passam indevidamente a ficar a cargo do trabalhador.
Para além de todas as obrigações decorrentes da lei para a prestação de teletrabalho, o PEV considera que há necessidade de alterar a lei em vigor, com vista a permitir, designadamente, que:
· os trabalhadores com filhos, ou outros dependentes a cargo até aos doze anos, com deficiência ou com doença crónica, bem como os cuidadores, os cidadãos portadores de deficiência ou de doença crónica, ou os trabalhadores estudantes tenham o direito de solicitar, por iniciativa própria, a prestação de trabalho em regime de teletrabalho;
· o trabalhador veja assegurado o pagamento, por parte da empresa, de custos acrescidos relacionados com o teletrabalho, como consumos de eletricidade, água, internet ou telefone.
· o trabalhador tenha a prerrogativa de rejeitar a proposta de teletrabalho, quando considere que não estão reunidas as condições para que a sua atividade seja prestada com dignidade, privacidade e respeito pelas condições de segurança e saúde no trabalho;
· o trabalhador não veja desregulado o seu horário de trabalho e que seja assegurado o seu tempo livre e o direito ao desligamento do trabalho;
· ao trabalhador em teletrabalho seja assegurado que não lhe é imputada qualquer falta ou repreensão disciplinar, no caso de avarias com meios de produção, falhas de energia, internet ou outras, que não sejam da sua responsabilidade.
Assim, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar Os Verdes apresenta o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1º
Objeto
A presente Lei altera os artigos 165.º, 166.º, 167.º, 168.º, 169.º, 170.º, 202.º, 231.º e 249.º do Código do Trabalho, para efeitos de regulação do teletrabalho.
Artigo 2º
Alteração ao Código do Trabalho
Os artigos 165.º, 166.º, 167.º, 168.º, 169.º, 170.º, 202.º, 231.º e 249.º do Código do Trabalho passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 165.º
Noção de teletrabalho
Considera-se teletrabalho a prestação laboral realizada sob direção da organização, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação de dados para receção e entrega do trabalho.
Artigo 166.º
Regime de teletrabalho
1 – Pode exercer a atividade em regime de teletrabalho um trabalhador da empresa ou outro admitido para o efeito, mediante a celebração de acordo para prestação de teletrabalho.
2 – (…)
3 – Além das situações referidas no número anterior, o trabalhador com filho ou outro dependente a cargo menor de doze anos ou, independentemente da idade, com deficiência ou com doença crónica, assim como o cuidador, o cidadão portador de deficiência ou de doença crónica, o trabalhador estudante, têm, por iniciativa própria, direito a exercer a atividade em regime de teletrabalho, nomeadamente em horário flexível, quando este seja compatível com a atividade desempenhada.
4 – (…)
5 – O acordo está, obrigatoriamente, sujeito a forma escrita e deve conter:
a) (…)
b) Indicação da atividade a prestar pelo trabalhador, com menção expressa do regime de teletrabalho, e correspondente a retribuição, incluindo o subsídio de refeição e demais valores a pagar nos termos da alínea g);
c) Indicação do período normal de trabalho e duração semanal;
d) (…)
e) Identificação dos instrumentos de trabalho, bem como do responsável pela respectiva instalação e manutenção;
f) (…)
g) Identificação do valor a pagar ao trabalhador, mensalmente, pela entidade empregadora a título de abono de ajudas de custo por conta do acréscimo de despesas realizadas ou a realizar, nomeadamente, com os consumos de água, eletricidade, internet, telefone e comunicações em geral;
h) Indicação da periodicidade das deslocações presenciais do trabalhador às instalações da empresa, o que deverá ocorrer, no mínimo, mensalmente.
6 – (…)
7 – (…)
8 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto no n.º 3 e no nº 5 e constitui contraordenação leve a violação do disposto no n.º 4.
9- No regime de teletrabalho, o horário de trabalho não se pode iniciar antes das 8 horas e não pode terminar depois das 19 horas.
10 – Findo o horário de trabalho, a entidade empregadora só volta a estabelecer comunicação e transferência de dados de índole laboral com o trabalhador após o reinício do horário de trabalho.
11 – No caso de estabelecimento de comunicação e transferência de dados de índole laboral, pela entidade empregadora, fora do horário de trabalho estabelecido, essa comunicação é considerada trabalho suplementar.
Artigo 167.º
Duração do teletrabalho
1 – No caso de trabalhador anteriormente vinculado ao empregador, a duração inicial do acordo para prestação de teletrabalho não pode exceder três anos, ou o prazo estabelecido em instrumento de regulamentação coletiva de tabalho.
2 – Qualquer das partes pode denunciar o acordo referido no número anterior durante os primeiros 30 dias da sua execução, ou, ainda, sempre que uma alteração das circunstâncias que levaram à prestação do teletrabalho o justificar.
3 – Para efeitos do número anterior, o trabalhador pode denunciar o acordo em caso de alargamento da composição do respetivo agregado familiar.
4 – Cessando o acordo para prestação de teletrabalho, o trabalhador retoma a prestação de trabalho no local e posto de trabalho definido no contrato de trabalho.
5 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto no número anterior.
Artigo 168.º
Instrumentos de trabalho e pagamento de despesas em regime de teletrabalho
1 – Os instrumentos de trabalho respeitantes a tecnologias de informação e de comunicação, bem como a outros materiais necessários à prestação de trabalho, pertencem ao empregador e são por este cedidos ao trabalhador, devendo ainda o empregador assegurar a instalação e manutenção dos mesmos, assim como o pagamento das despesas inerentes.
2 – A entidade empregadora assegura o pagamento de valor não inferior a 1,5% do salário mínimo nacional, por cada dia de trabalho prestado, como forma de compensar despesas, nomeadamente as referidas na alínea g), do n.º 5, do artigo 166.º, que o trabalhador tenha pela prestação do trabalho em regime de teletrabalho, sem prejuízo da aplicação de disposições mais favoráveis ao trabalhador constantes de Instrumento de Regulamentação Coletiva de Trabalho.
3 – No caso de necessidade de o trabalhador recorrer à utilização de espaço e serviços externos, tal como o coworking ou outro, para garantir as condições de prestação de trabalho, cabe à entidade empregadora assegurar o pagamento dos valores inerentes à utilização do espaço e dos serviços em causa.
4 – (Anterior n.º 2)
5 – (Anterior n.º 3)
Artigo 169.º
Igualdade de tratamento de trabalhador em regime de teletrabalho
1 – O trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores, de acordo com o estabelecido em Instrumento de Regulamentação Coletiva de Trabalho, nomeadamente no que se refere a retribuição, complementos retributivos, formação e promoção ou carreira profissionais, limites do período normal de trabalho e outras condições de trabalho, segurança e saúde no trabalho e reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional.
2 – (…)
3 – (…)
4 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto neste artigo.
Artigo 170.º
Privacidade de trabalhador em regime de teletrabalho
1 – (…).
2 – Sempre que o teletrabalho seja realizado no domicílio do trabalhador, a visita ao local de trabalho requer um pré-aviso de 48 horas e a concordância do trabalhador, e só deve ter por objecto o controlo da atividade laboral, bem com dos instrumentos de trabalho, podendo apenas ser efectuada no período definido como horário de trabalho, com a assistência do trabalhador.
3 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto neste artigo.
Artigo 171.º
Participação e representação coletivas de trabalhador em regime de teletrabalho
1 – O trabalhador em regime de teletrabalho mantém os direitos sindicais e integra o número de trabalhadores da empresa para todos os efeitos relativos a estruturas de representação coletiva, podendo candidatar-se a essas estruturas.
2 – O trabalhador pode utilizar as tecnologias de informação e de comunicação afetas à prestação de trabalho para participar em reunião ou plenários sindicais promovidos por estrutura de representação coletiva dos trabalhadores, assim como ter o tempo necessário à sua deslocação caso os mesmos se realizem apenas presencialmente.
3 – (…)
4- Para efeitos do estabelecimento das comunicações previstas neste artigo, o empregador fornece às estruturas de representação coletiva dos trabalhadores os meios necessários e adequados de contacto com o trabalhador em regime de teletrabalho.
5 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto no presente artigo.
Artigo 202.º
Registo de tempos de trabalho
1 – O empregador deve manter o registo dos tempos de trabalho, incluindo dos trabalhadores que estão isentos de horário de trabalho ou teletrabalho, em local acessível e por forma que permita a sua consulta imediata.
2 – (…)
3 – (…)
4 – (…)
5 – (…)
Artigo 231º
Registo de trabalho suplementar
1 – (…)
2 – (…)
3 – O trabalhador em regime de teletrabalho só pode realizar trabalho suplementar desde que o mesmo seja solicitado por escrito pela entidade empregadora.
4 – (Anterior n.º 3)
5 – (Anterior n.º 4)
6 – (Anterior n.º 5)
7 – (Anterior n.º 6)
8 – (Anterior n.º 7)
9 – (Anterior n.º 8)
10 – (Anterior n.º 9)
Artigo 249.º
Tipos de falta
1 – (…)
2 – (…)
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) A motivada por impossibilidade de prestar trabalho devido a facto não imputável ao trabalhador, nomeadamente observância de prescrição médica no seguimento de recurso a técnica de procriação medicamente assistida, doença, acidente, cumprimento de obrigação legal, ou corte de energia, avaria, falha de equipamentos de trabalho com causa não imputável ao trabalhador;
e) (…)
f) (…)
g) (…)
h) (…)
i) (…)
j) (…)
k) (…)
3 – (…)»
Artigo 3º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Assembleia da República, Palácio de S. Bento, 21 de abril de 2021
Os Deputados,
José Luís Ferreira
Mariana Silva
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