No passado dia 5 de julho a publicação de uma proposta da Comissão Europeia(CE) para criar um quadro regulamentar para a nova geração de organismos geneticamente modificados veio, uma vez mais, pôr em evidência a enorme fragilidade da soberania dos estados e da democracia numa União Europeia desigual, e trazer à luz um percurso consistente de fragilização da agricultura tradicional ditado pelo agronegócio.
Os argumentos para fundamentar a pretensão da CE são aqueles a que já assistimos em tantos setores subjugados à premência climática na sua abordagem economicista “pintada de fresco “ tão pouco verde, tão pouco futuro. Exige o agronegócio, e com ele a CE, que nos ambientemos, o mesmo será dizer que nos resignemos a comer (literalmente) o que nos cair na sopa.
Assim será, caso a pretensão da CE passe à prática. O que está então em causa? Antes de mais a abolição do acesso à informação sobre alimentos, ou seja, os consumidores deixam de poder saber se as sementes, ingredientes e produtos alimentares que compram têm ou não os novos OGM, ao mesmo tempo que se legitima a sua libertação, sem que sejam testados, na natureza. Riscos para a perda da biodiversidade ou nível de interferência com os polinizadores, passam ao lado do rigor científico, e a presunção é a mesma no que se refere à saúde humana. Investir e cavalgar na escalada de lucro primeiro, pagar a fatura e minimizar danos depois.
A legislação que pretende desregular as “novas técnicas genómicas”(NTG), organismos sintéticos cuja segurança está longe de ser comprovada, segue o modelo de negócio com base em patentes, detido maioritariamente por empresas do setor dos pesticidas e das sementes cuja lógica de produção superintensiva e delapidadora dos recursos naturais se estende à escala global à custa das fragilidades sociais, económicas e ambientais dos pequenos agricultores e produtores, da agroecologia.
A CE opta por ignorar em absoluto o princípio da precaução e entende transferir os riscos para os consumidores, desresponsabilizando as grandes empresas. Na prática esta proposta permitirá a introdução dos novos OGM sem avaliação de risco, isentando de rotulagem os alimentos derivados desses OGMs, sem rastreabilidade e sem monitorização, pondo em risco a saúde pública e o ambiente.
Tão ou mais grave é o facto de a perda da rastreabilidade dos novos OGMs e, consequentemente, das patentes dos seus genes, poder permitir que as empresas detentoras dessas patentes confisquem todas as sementes disponíveis, retirando aos agricultores o direito de usar, selecionar e trocar as suas próprias sementes, o que devia fazer soar todos os alarmes, em nome da soberania e da segurança alimentar.
Na ausência de evidência científica sobre a segurança dos novos OGM, caem por terra quaisquer argumentos favoráveis a este salto no abismo, desde logo pelo facto da indústria defender que esta tecnologia é garante de redução da dependência de herbicidas, pesticidas e fertilizantes, o que carece em absoluto de fundamentação.
Aliás, o que o modelo agrícola norte americano e brasileiro veio confirmar é que com a adopção de cultivos de OGM o uso de pesticidas aumentou exponencialmente, desde logo pelo facto de se terem desenvolvido plantas e ervas daninhas altamente resistentes ao glifosato (o que obrigou ao uso de outros herbicidas). E de que forma reagiu a indústria? Da forma mais rentável para o negócio: introduzindo novos cultivos de OGM capazes de tolerar combinação de glifosato e outros herbicidas, mantendo os agricultores como clientela fiel.
Num mundo de Cimeiras e Acordos climáticos são as políticas ecologistas e de esquerda a ausência mais sentida para garantir a justiça social e climática que coloca as pessoas e o futuro do planeta no centro das decisões, afastadas dos lobbies do agronegócio e com uma visão clara sobre a concepção de sustentabilidade que verdadeiramente se impõe. Proteger os direitos dos agricultores sobre as sementes, cultivar a agrobiodiversidade, pôr fim aos subsídios públicos dirigidos a produtos e práticas potencialmente nocivos, é por esse motivo decisivo para fazer cumprir o direito de todos à alimentação.
Como pode uma visão europeia para uma política ambiental justa colocar sob a mesma mesa uma lei de restauro da natureza como tábua de salvação- sem que garanta a proteção da agricultura familiar e desvirtuada nos objetivos de conservação e proteção – e (conta)minar a base da saúde global, da cadeia alimentar e a biodiversidade com uma proposta imoral apenas compreendida à luz de um contexto sociopolítico em que as crises emergentes e alarmismo distorcem a necessidade séria de nos organizarmos e agirmos comprometidos pelo ambiente, pelos direitos humanos e pelo clima, fazendo deste um debate urgente, plural e acima de tudo democrático.
Ambientem-se pois.